Escapa-me das mãos, como areia, a possibilidade de uma ideia pra chamar de minha. Já desisti do lar que me abandonou e que se foi sem esperar por mim.
Nunca sequer visitei um salão de palácio. Adotei palavras aos picados, transformei-me em uma colcha de retalhos incômoda e suja. Não teve um costureiro habilidoso. Não sei se guardo na cômoda ou largo no parapeito da janela, à vista de tudos. Não sei se a atendo, ou se deixo como está. Não sei se deliro com o furo da agulha, ou se minhas palavras tem alcance além da minha própria imaginação.
Sempre do lado de fora do baile, depois sobra-me o chão para limpar. É um salão vasto, com muitas vozes impregnadas em seu mármore, repleto de graças e virtudes. Cato uma coisa aqui, outra ali, guardo um petisco no bolso. O banquete já foi. Está tudo bem, enchi o estômago, a fome se foi, mas não saciou. Era pra mim? Quando será para mim? Eu tenho permissão ou convite para estar aqui? Queria estar, não mal estar de ser visto sem ter o que dizer. O que você quer afinal? Tem algo para nós? Não, quero apenas ser visto. Quero... Queria, que minha voz soasse aos ouvidos de alguém ao menos uma vez. Que ao menos uma vez eu dissesse palavra para que entendam palavra. Ainda que desafinada e rouca. Queria eu.
E onde estou? No corredor de um hospital público, está frio, ouvindo Debussy, refém da sonho.
Toca o telefone, e é ela. Sei mesmo antes de atender. Eu vou ao seu chamado, ou me relego aos meus devaneios? Ela diz: te chamo desde sempre, te quero, venha, venha aqui, senta no meu colo. Com estas mãos cheias de calos? Pergunto, e ela diz, sim, mas eu não ouço o sim, meus ouvidos ouvem outra coisa. É um idioma antigo, é um chamado antigo. No meio desta rua movimentada, escuto ou deliro? Não seria, por um acaso, a buzina de alguém com pressa? O barulho dentro de mim?
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