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O Pecado

Da névoa ao acre Do acre à gastrite Da gastrite à serenidade Da serenidade à lucidez Náuseas enxaquecas E uma perna enroscada no lençol Não me lembro se quando adormeci Era rude como um pavão Ou delicada como um leão. Mas enquanto a luz Apaga e causa a tempestade Acende e arromba a puberdade Lembro que era vermelha, Da cor da minha paixão.

Letícia Setubal Damasceno

Ah, se minhas letras tivessem cor! A cor dos meus desejos, das impulsões. Tivessem a cor dos dedos, e apontassem a direção dos meus segredos. E te mostrassem a direção dos meus braços, das minhas pernas. Das minhas pernas paradas nas esquinas. Que me levam para duas direções  - vou para onde primeiro me puxarem - E se elas tivessem voz... A voz de gritar Alto Máscula Áspera Rouca A máxima expressão de minhas paixões A dor máxima do frio das esquinas Dos meninos das meninas O máximo frio dos velhos lençóis e colchões Se elas tivessem o cheiro azul das camas dos hospitais O gosto cinza das guias das avenidas Os sons amarelos das alamedas aformigadas O toque branco, fosco, da luz espelhada no chão noturno. E se ainda, e por último, por enquanto Tivessem calor! O abraço brando eriçando os pelos! Ai, os pêlos! Hum, os pêlos! E a maciez das madeixas me cobrindo o corpo Tapando-me o sofrimento Preenchendo-me o vazio Por fora e por dentro Ao menos neste momento.

Porta Fechada

Depois de um ou duas dobrada em trouxa Soltando labaredas pela boca frouxa Vomitando a leviandade entre as marcas coxas Na fornalha de cetim, paredes velhas, cortinas roxas. Encontrará aqui minha porta fechada Fechada às cegas na embriaguez. Em distração mera apaixonada Deixando fora mais uma vez. E segurando tua mão direita Como mordida lacraia à espreita Envenenada morta enquanto deita Desgraça vil, tristeza feita. Vejo-te preso do lado de fora Empurrado grosso na minha cólera Lutando contra minha resignação Gritando: Não! Não vá embora!

Na Janela

Vejo daqui de cima Daqui de cima vejo, Vejo meu amor passar. Apoiada no queixo No queixo apoiada Vejo meu amor passar. Carregada entre suspiros Suspiros entre carregadas Vejo meu amor passar. Fecho a janela Nela já fecho E vejo meu amor passar. Vejo meu amor passar Passar o meu amor vejo Vejo minha vida passar, Vejo minha vida pesar.

Morfina

Nesta vida Cheia de agitações tardias, Conformo-me com a frieza dos dias Onde sinto na alma o sumo açoite De entregue ao corpo estranho pela noite. E assim mesmo, sacudida, não me ama E não me vê, não me olha, não me chama Mas deste prêmio corpo eu divido a cama E se a alma esfria, o lábio tenso inflama. E engano-me com o canto colibri de flautas Quando há mesmo o som de um murmúrio em praça incauta E envergonho-me enquanto o choro sobressalta Por uma febre que temo e assusta, mas falta.

Porta Aberta

Saia de imediata prontidão Carregue o seu saco de pedras Pise por cima de minhas lágrimas Atravesse as alamedas mortas do jardim Feche o portão, feche a rua, feche a avenida Mas encontrará no fim da sua vida aqui minha porta aberta. Estarei deitada entre um soneto de perdição e outro Com uma rosa atravessada na mão e outra Copo de medida veneziana e outra Alucinação regurgitante e outra* Ácido na garganta e outra Minha porta aberta. Meu corpo Morto. E outro. E outra.

Alma Traça

Através das prateleiras de uma livraria Descobri em um volume, acho de Madalena Ousadas muito velhas escrituras de Maria Premiada fui então por ser digna de pena. Entre as páginas abertas, a página daquela Em cada uma que folheio outra me espanca Renasço todo dia sempre em forma de Flor Bela De pele reluzente, mas espírito que manca. Achei-me, muito vivas entre as letras corroendo De verniz, enxovalhada identidades às traças Levantei uma garrafa e aos convivas morrendo: - Pela honra deste amor, bebamos as nossas taças!

Um de Isabelle La Fleur

Isso é um caso trágico de vida inconsequente que resultou na minha mudança de cidade. Regado à insônia, vinho (bebida dos loucos pretensiosos), vodca, cigarros e a droga de uma recordação. Ah Letícia, por que me deixou? O seu olhar me olhava de um pra sempre que me deixava estática, segura. Amigas para sempre! Por que foi embora, hein? Hein? Seu cheiro. Tenho saudades do seu cheiro, aquele seu cheiro me lembrava depois de amanhã, que ninguém tem coragem. Eu olhando essa cidade toda amena me lembra você. Um homem cego apoiado em sua vara foi chegando e sentou ao meu lado, de barba e tudo, com a calça jeans amarela batida. Tocou-me a perna na perna. - Escuta mocinha? - como sabe que sou mulher só me pegando na mão? Não saberia dizer de olhos fechados se era a mão da Letícia ou do Rodrigo. Ele nem se conforma, mas amantes são assim mesmo Rodrigo. Não se contenta, se desespera. Olha-me com calmo, olhos cínicos, mentirosos, mas por dentro está em estado de guerra civil, des

Poema de Pedra

No fim Lá atrás, entre a colheita mal feita e o vinho maltrapilho, Construí uma igrejinha de pedra, de São Bananais, Santo meu, criado meu. Jesus Cristinho derrubou as taças, os pratos, as pratas. Na igreja de São Bananais. Cavei com as unhas na pedra o nome do Nosso Senhor. A pedra voltou-se a mim amarela, empoeirada desfalecendo. Fica agora, cai ou não cai. Morre ou não morre. E o morre desmorre da vida desvida que não vai. Nem vem. Nem vai. Entre o vinho maltrapilho, escolhido no mercado, atrás do balcão de carnes e frios. Não tem imagem de São Bananais. Jesus Cristo tomou-me as mãos e salvou-me por enquanto. Mas enquanto eu derramava o vinho, a mão escorrega. Embriagado morre. Escorrega vive. Vai, não vai. Colhi da escolha de Não Bananais. Não, pedra. Sem fumaça de algodão doce cheirando na alma. Não, pedra. A mulher, madura, cheirando a carne mordendo a cruz. Não, pedra. O travesseiro frio, a luz, a luz, a luz... Não, pedra. A boca rosada, cor de curiosidade, lambendo a palma. Lam