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Eu sou uma péssima pessoa

Eu não sou uma boa pessoa. Admitir isso é libertador, pois me livra de uma obrigação moral com quem quer que seja. Não estou vivendo em função de nenhum tipo de virtude pessoal e eu não quero passar atestado de bondoso. Não existo para que as pessoas gostem de mim. Os meus raros amigos me aceitam como sou, sabendo da minha natureza difícil e insuportável, e raramente faria isso, mas viver e ter pessoas que não se deixam intimidar pela minha acidez e desprendimento destas questões da moralidade é libertador. Até às vezes me permito ser grato à vida. Talvez seja a única razão que me desperta este sentimento de gratidão, por eu poder ser a péssima pessoa que sou, e ainda despertar o afeto de raras pessoas que não se deixam enganar pela necessidade de reforçar os seus egos e seu narcisismo em mim. Por isso amizades parecem realmente coisas muito raras.

San Michele a Ripa

Sai da espada tua lágrima de pérola E atira-me violenta à danação eterna Esta prisão de sangue, suor e sorte. Com o tordo e larva preso em tua jaula Que ao ter a porta esgarçada e frouxa Voa em certa liberdade para a morte. No pulso, a cela em ferro e estilhaço Do cheiro ao gosto da ferrugem rompe No indulto face em frente à encruzilhada? Tuas janelas que ao Tibre se refletem Olham fundo ao abismo que os mira De uma boca dolorida e desdentada.

Bucolismo

Com tua carroça cheia dos restos da cidade O catador para diante da margem do rio É um rio largo, escuro, mal cheiroso Ele observa o reflexo nas águas, suspira e vai embora: - Esse rio é tipo um abismo. Todo dia passa ali, com tua carroça colorida de catador. A engenharia é uma piada tecnicista Tem uma TV quebrada Num celular, uma antena de carro, só por ironia Um CD de um grupo de Axé que já acabou - o resto de uma alegria do passado - Uma boneca vestida com roupa de mecânico Restos de móveis Restos de roupas Restos de memórias fragmentadas. Ele mira o reflexo nas águas, suspira, e vai embora: - Esse rio aí, é um imenso abismo. Todo dia é a mesma coisa. Do outro lado da margem do mitológico rio:  A vista bucólica de um jardim bem cuidado Casas em seu devido lugar Pessoas em seus devidos lugares É tudo como se fosse um sonho. Ele olha as águas, se vê no fundo distorcido, suspira, pega sua carroça e vai embora - Um dia atravesso o rio. O rio é quase sem fundo e quase sem vida.

Eurípedes

A moça de 26 anos busca a noite para ser de novo menina. O motorista de ônibus anseia pela última viagem. Salta o coração da faxineira sua canção favorita no rádio. O homem de negócios espera uma ligação importante. O professor olha, esperançoso, a letra cursiva do garoto. A enfermeira limpa com zelo, o corpo do paciente, prestes a se recuperar. A garçonete pode receber uma gorjeta. Todos , de alguma forma, porém, se encontram no caos do cruzamento central da cidade. Enquanto a felicidade não vem.

A Praça

Chegando na praça central Ouço os ecos e os rumores De uma vida que parece outra Os risos de andarilhos sem caminho Os caminhos de passos tortuosos O desgaste do que antes fora arte As estátuas sem nome Os nomes nas placas sem história Folhas caídas pelo chão  Os recortes no ar, de galhos retorcidos Ominoso, lugubre e risonho Será que um dia voltarão a florescer? A cada suspiro uma mão distante me acena Miragem ou ilusão, um consolo de memória. Por que tão vazia? Por que tão pouco visitada? Por que assim, remota, esquecida? Cercada de casas sem família Cercada de muretas sem ter o que proteger Nesta praça de ruas que não vão e nem chegam Somente o velho reina Meu filho, diz o vento, é assim mesmo. Quantas vezes soube tu, alguém que guardasse teu nome? A praça tem som de tranquilidade e cheiro de saudade.

Passado em Cinzas

A vida é um Casino Onde a moeda é o tempo Apostas à mesa A decisão é um jogo de sorte Cada perda custa caro E ele ou ela que foram um reinado Moveram mundos e multidões Diante do último suspiro até onde a vista mira Como sentiram-se estúpidos no anoitecer. Paguem esta conta com cinzas ou sangue Limpem os pés ao sair E guardem os sapatos no baú da memória.

Torre de Marfim

Creia na força da palavra E no ato da nota creia Que para cada verso bordado Firma-se o tecido na veia. Leia o leito caudaloso  Deguste este versar Como quem costura A boca do teimoso. Pois tecidos, não trapos Esgarçam-se na pele Mal os tapam o frio E a pouca das vergonhas Enquanto versos desenrolam Transbordam sangue lá e cá  Dos corpos que caem pelo rio. Do alto de suas torres de quinquilharias finas O som de seu clamor íntimo morre pelo ar Como quem, de apelo surdo  Morre de fome no chão. Obrigado por explicar  À existência da minha miséria A miséria da minha existência.

Dopping

Eu te escrevo esta carta Enquanto em minha mente Tudo cheira a ferro Deitado em leito esplêndido Um homem sem feição  Analisa os ferimentos  Ele não mirou nos olhos Cantarolava um rock Enquanto agonizava em vida  Na descida ao litoral A ventania bagunça os cabelos Mas na memória penteadeira Manchas pretas nas digitais  Nas últimas linhas em tinta E no pensamento tarde demais.

Experiência

Quanto se nega ao coração A verdade de uma morada verde? Pouco serve o maduro fruto  Se o que se morde é sem sabor! O enquadro é farsa, sentido vão A pintura esparsa, vazia visão Quando muito tem-se tempestade O que sobra e sente é sopro Tredo abraço que outrora afaga Nessa falta é tudo o que sobeja.

A quem serve a ciência?

A quem serve a ciência? A quem ela serviu durante todos esses anos? Ela esteve presente na sociedade como uma instituição de conhecimento a serviço das necessidades gerais da população mundial? Ela esteve a serviço do enriquecimento de grandes corporações? O quanto de ciência merecem as pessoas dependendo da sua classe social? O espantoso para mim, em 2020, não foi o motor anticientífico, nem o negacionismo, conduzida pela condução sensacionalista do jornalismo brasileiro, uma prostituição da integridade informativa em troca de views, audiência e publicidade. A população mais pobre, essa massa generalizada e completamente excluída do direito de identidade, de individualidade, uma vez que é definida massa, é essa aglutinação forçada e imposta pelos porta-vozes do saber, esteve sempre aí como objeto de laboratório, e sempre foi excluída do debate científico. A bem da verdade, o cientificismo brasileiro foi tomado pelo corporativismo, pelo autoritarismo e pelo elitismo. Em certo momento p