Pular para o conteúdo principal

Para pepper dizem peperone, para saccos, dizem Sacconi

Sob influência do horror causado pelas redações dos candidatos, o analisador, preso num tempo psicológico de um passado distante, passou a refletir com uma angústia individual. Não eram de ameaças em caráter pessoal que sentia o horror, ainda porque, até segunda ordem, o analisador, por meios de manter a sua integridade física, intelectual, moral e (por que não?) política, era mantido no anonimato pela instituição empregadora do seu renomado cargo temporário de quem diz o certo e o errado das transcrições dos pensamentos.
Repletas de idéias atravancadas, recheadas de bobagens e estapafúrdias construções gramaticais, incoerentes, como se fosse adentrar na mente insólita dessa geração perdida, era horror subsequente a horror, a saber, que o primeiro principal entrave para a compreensão estava na insistência do erro. A gramaticalidade estava condenada, pensou, temia pelo futuro do país, pensava nas crianças, nos seus filhos. Temeu ter filhos. Temeu até mesmo desposar uma merecida mulher, perfumada, cheia de ais e uis. Sua vida, seus sonhos, suas expectativas, todas sendo desmanchadas, desaguadas por assim dizer. O espesso negro do nanquim ia perdendo o brilho, analogamente, quando atirada no copo daquela água sem propósito. Ah redações, desviaram o rumo e a saúde de uma mente cheia de vontades! Sem propósito, sem padrão. Repulsivos fluxos de consciência.
“As abelhas africanas que estavam cheias de mel, mal saboriavam a vida, quando tinham qui saudar a sua rainha no acazalamento”.
Horror, mais puro horror! Sentia maior ameaça à sua saúde intelectual ao debruçar-se na mesa das discussões acadêmicas e ter de se deparar com aqueles discursos da sociolingüística. Para os infernos com Labov e toda a sua gentalha! Queimava os artigos de um Bagno como a um adorador de Satã, que atira ao fogo, sem temor, a palavra de Deus que os cristãos tanto temem e respeitam, no livre-arbítrio de entregar sua alma à salvação do seu Messias. Maldizia, com babas nas barbas e com as ancas contraídas, todas as bobagens sem mérito de Possenti. Eméritos inúteis, todos uns comunistas, dizia, comunistas! Querem fazer daqui da nossa língua como fez o Fidel da sua Cuba. Mas aqui não é uma Cuba, aqui nós somos livres! Viva a língua democrática do Brasil!
“O tomate, quando retirado da pura hortaliça, é o alimento mais correto para preparar o molho de espaguete.”
Correto, diz ele, correto. Pois está bem, seu crime contra o bom português lusitano lhe merece um incorrecto. Logo mais o que vão fazer? Para intacto dirão intato? Farão um cato do cacto? Espaguete? Spaggetti? Canetou vermelhamente o texto, estava reprovado. Não, jamais poderia aprovar uma coisa assim. Nada de variantes, chega. As variantes não condizem, não respeitam, nada de variantes! Num futuro distante farão o que? O que seria do méthodo? Da colecção? O que seria da physica, psychologia? Somos homens modernos ou homens das cavernas, desorganizados em nós mesmos, presos a uma decadência de condições de sobrevivência? Ah meus filhos, temo pelos meus filhos!
“Convenciona-se que um homem está sóbrio quando consegue fazer um quatro com as pernas.”
Convenccionou que esta nova construção não tardaria em ir para o limbo dos reprovados. Centenas de textos inutilmente produzidos fizeram-no querer a desistência. Para desabafar, para salvar a saúde de sua sandice, pensou em, ao fim das correções, enviar as redações anonimamente ao horário nobre da TV, com o cuidado ético de guardar o nome de seus autores. Para o regozijo da platéia inteligente, que consegue obviamente fazer a correcta (ah!) distinção entre um porque junto e um por quê separado, e que junto riem, para a auto-afirmação de suas inteligências, despreocupando-se da oração subordinada ou coordenada, sob a coordenação de uma equipe muito bem preparada para não conter o humor do discurso livre, causando-nos uma repulsa pela nossa situação educacional, e justificando assim a incompetência no democrático teste que, com punhos de ferro, decide o que estaria certo e errado.
Estes maldosos candidatos, corajosos pelo menos (vale-se o reconhecimento), mostram o que tem de pior, expõem a sua fraqueza, e beneficiam na científica separação das inteligências às burrices. Aos burros, os paus da rua. Para a vida toda se tem um propósito, mas mérito algum chega sem o devido esforço. Separemos o trigo do joio, e deixemos a descrédito aquele que peca contra o verbo, tendo como castigo o não merecimento para adentrar as portas do paraíso da nossa língua tão bem portuguesa.
A minha língua banalizada, exclamava na sua revolta silenciosa, jogada ao deus dará de como bem se diz o que se quer, como se quer. Esses redatores de línguas de ônibus, esses redatores de mesas de bar. Esses redatores cheios de libertinagem na língua, dos problemas sociais. A língua é dos homens, mas a palavra é da sociedade. Eu posso discutir o problema do córrego falando córgo? Esse homem social aí, eu entendo o seu pobrema, mas ele não pode entender o meu problema? Sua vida está nos meus livros, mas quanto dos meus problemas está num livro seu? Ele sequer lê livros! Ele sequer lê! Anarquia na língua! Acudam-nos aqui policiais e cães da boa sintaxe, acudam aqui, a esses manifestantes involuntários que sequer cuidam de si, dessas barrigas cheias de fome. Falta-lhe o sabor da palavra certa. Córgo, córrego. Hunf! Os problemas sociais não podem trazer mais problemas gramaticais! Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa! Pois os problemas sociais estão todos bem escritos nos bons livros, ali para a solução de todos. Mas quem desses todos soluciona os problemas da boa língua? Batia com a cabeça repetidamente na mesa, bagunçando as pilhas de redações.
Já basta, já não agüento tantas provações e privações! E pediu demissão do cargo, enfurnando-se na saudosa lembrança dos seus casamentos com suas obras monumentais. Para pepper, dizia pepperoni, para saccos dizia Sacconi.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Erospectro

Dança a débil seda da cortina em altivez Acaricia, enquanto sôfregas, balança O alabastro lívido de porcelana tez. Ajoelha ante a luz da superfície pálida Princesa portentosa do teu estreito templo Aporta em silhueta a majestade cálida. Anda, paladino, sobre a laiva curvatura Forrada do plantio de calêndulas laranjas Descansa à boda quente da lacuna escura. Venera esta abadia, pétala a pétala Diante da minha dupla onírica imagem Repousa em cada vale de divina sépala. Despeja-me o orvalho em êxtase, a coroa, Na carne-alvura arqueja em nosso infausto cio, Em véu e labareda, um altar, uma pessoa. E quando finda a música, resta-me a visão: Princesa, diabo, luz, deleite em união, No espelho sorridente à criadora perdição. 

Tua Palavra

Palavras como fios E teus dedos costurando Um caloroso manto Para minha sombria alma. Palavras, que como pão Desta tua fome tão antiga Onde cada sílaba que canta Vira a ceia da minha calma. Palavras, como tuas mãos Que quando escreves meu nome Eu sinto O calor do teu gentil enlaço. Palavras como a brisa A brisa que a mim veio  No alívio das noites infernais Na doçura dos teus braços. E se ousa um dia duvidar Da força daquilo que escreve Lembra: O mundo que é só trevas A vida que era nada Tudo começou, até amor Pela Palavra.

Sacrum Putridaeque

  sacrum putridaeque "Animae exspirant, redire nolentes... Sed redeunt in sudore, dolore et metu, formam suam relinquentes." ✝ Invocatio Sacroputrida: Vox Ultima Ex Reliquiis ✝ Substância em ardência Como que em condenação Ao inferno da tua ausência. De seu cílio cai o lastro Da aurora poma aberta Afligida ao omisso mastro. Minha boca sente a míngua Pela privação do tato Da oração com tua língua. Numa parte sem ritual E eu aqui que só me encontro Do meu gozo sepulcral O meu tédio, meu remanso Invocatio sacroputrida Sem perdão e sem descanso! Ora em mim sem castidade Faz-me diário do teu ímpeto, Sem decência ou piedade! ================================================== Invocatio Sacroputrida: Vox Ultima Ex Reliquiis Substantia in ardore Quasi damnationis Ad infernum absentiae tuae. De cilio eius cadit onus Aurorae pomum apertum Afflictum ad mastum neglectum. Os meum sentit inopia Privatione tactus Orationis cum lingua tua. In parte sine ritu Et ego hic solus invenior Gaudii m...