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Manuel Bandeira - Correspondência entre Infância e Memória

Manuel Bandeira é considerado pela crítica como um dos maiores poetas da literatura nacional. Seu lirismo inconfundível foi, senão o maior, um dos mais destacados representantes do que era proposto como novos caminhos para a poesia nacional, irradiado a todos os cantos do país a partir do movimento Modernista idealizado na Semana de Arte Moderna de 1922.

O que diferencia Bandeira dos demais poetas seja, talvez, a temática de sua poesia. A complexidade inicial limita-se à estrutura de versos livres, que, mais do que simplesmente soltar versos aleatoriamente no papel, marca a trajetória de seu lirismo e da sua mensagem poética, deixando evidente que até os sinais de pontuação, se levados em consideração, contribuem para uma compreensão mais ampla de sua obra.

Sabemos que para muitos críticos uma obra de arte, quando considerada como tal, ultrapassa o tempo cronológico de seu autor, e trafega livremente por qualquer época entre passado e presente, em qualquer momento ou cultura da história humana. Uma obra de arte veste em todos os homens a idéia universal traduzida pelos olhos do autor que, munido de plena sensibilidade, fala de sentimentos comuns aos homens, mas com tamanha maestria que é como se falasse por todos os homens. Roland Barthes, polêmico crítico de arte francês, era a favor desta concepção de que o verdadeiro artista não detém o controle sobre a sua obra, em outras palavras, desmanchava o mito de “autor-Deus”, pois a obra, quando uma vez exposta ao público, o seu significado transcenderia os limites da sua significância, ou como afirmava que “a morte do autor é o nascimento do leitor”.

Há poetas, e porque não poderia deixar de ser, que fazem de sua obra a história artística de suas próprias vidas, simbolizando com imagens aquilo que não poderiam simbolizar com palavras diretas. O que caracteriza logo a princípio a obra de Manuel Bandeira é uma profunda tristeza e desilusão com a vida, como pode ser lido nos poemas de sua primeira publicação, A Cinza das Horas. Mas longe de ser o comum medo que a juventude tem de enfrentar os longos anos de uma vida inteira, ou quem sabe aquela desilusão pouco justificada dos literatos da elite romântica (diga-se de passagem, Álvarez de Azevedo ou Camilo Castelo Branco), Manuel Bandeira imprime em seus versos uma desilusão que é verdadeira, um desgosto profundo de pender entre a certeza da morte e a dúvida pelo novo dia, resultado de sua doença respiratória. Quando descobriu que tinha tuberculose, partiu para a Suíça para fazer um tratamento, e daí em diante este fato marcaria a sua obra para sempre. E mesmo com o passar dos tempos, vivendo os seus oitenta e dois anos de idade, no amadurecimento, Bandeira não altera a temática de sua poesia, não se deixa seduzir pelos eventos externos à sua personalidade, preservando e sempre prevalecendo a simplicidade do pernambucano que tem como pretensão absoluta simplesmente a vida que lhe foi negada. Massaud Moisés (1995, pg 393) acrescenta que “suas antenas captavam sinais em toda parte, absorviam-nos e transfundiam-nos em mensagens de beleza, mas sem alterar a substância de uma visão do mundo que se manteve fiel a si mesma, no decurso de meio século de elaboração poética” e que a poesia de Manuel Bandeira “constitui uma espécie de diário íntimo, registro lírico dum dia-a-dia em que a Arte era o prato obrigatório”.

No poema a seguir, Desesperança, do livro A Cinza das Horas (1917), temos uma idéia do que era a vida para o autor:

(...)
Assim deverá ser a natureza um dia,
Quando a vida acabar e, astro apagado,
Rodar sobre si mesma estéril e vazia.

O demônio sutil das nevroses enterra
A sua agulha de aço em meu crânio doído.
Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...

Minha respiração se faz como um gemido.
Já não entendo a vida, e se mais a aprofundo,
Mais a descompreendo e não lhe acho sentido.
(...)
(Desesperança in A Cinza das Horas)

Mas, mesmo com a sua doença, isso não impediu que Bandeira tentasse viver uma vida normal, sem ter-lhe preso aos pés uma preocupação hedionda com a hora da morte, permitindo-lhe até mesmo fazer de sua própria desgraça uma piada. A seguir um trecho do poema Pneumotórax, do livro Libertinagem (1930):

(...)
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
(Pneumotórax in Libertinagem)

Além desta preocupação na vida de Bandeira, outro aspecto que também muito marca a sua obra é a forte ligação que ele tinha com os seus entes queridos. A sua recordação dos anos de infância remonta as imagens de seus avós, das moças que o criaram quando criança, de seus pais, seus irmãos, e todos aqueles por quem ele pudesse creditar algum afeto. Carinhoso e delicado por natureza, nunca deixava de homenagear em suas poesias aqueles a quem tanto devia por sua formação como ser humano. Antes que uma simples menção egocêntrica de sua própria vida, a angústia da qual Bandeira retratava em suas recordações de infância, era traduzida pela pungente dor da saudade, e anos mais tarde, na solidão. Aqui um famoso poema em que falava de sua irmã, O Anjo da Guarda também do livro Libertinagem:
Quando minha irmã morreu,
(Devia ter sido assim)
Um anjo moreno, violento e bom,
- brasileiro

Veio ficar ao pé de mim.
O meu anjo da guarda sorriu
E voltou pra junto do Senhor.
(O Anjo da Guarda in Libertinagem)

Suas recordações, ora melancólicas, ora nos enganando com uma tentativa de querer ser feliz (o que difere do estado em si) quando no fundo, com o olhar mais atento, nota-se um apelo confessionário para aliviar as dores da vida, usa como tentativa de fuga da sua cruel realidade e condição de vida, as lembranças do tempo da infância. Em muitas obras, esta delicadeza, esta ternura juvenil repleta de uma inocência pura, na verdade implica numa tentativa de depositar todas as suas esperanças de alegria na busca das melhores lembranças da sua época de criança, ainda que em misto a uma dor de ora transitar pelo imaginário da memória e aceitação da realidade. Também de Libertinagem, o poema Evocação do Recife, temos um Bandeira passeando pela imagem da cidade natal, através de suas recordações, e ao mesmo tempo, negando um progresso que destrói as suas memórias pueris:

Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás da casa ficava a Rua da Saudade...
... onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
... onde se ia pescar escondido
(Evocação do Recife in Libertinagem)

Conforme o amadurecimento da sua obra, especialmente a partir de Libertinagem, quando assume de vez a estética modernista, e deixa para trás as suas influências do parnasianismo, ficam cada vez mais evidentes a sua transição nestas recordações da infância e nas suas memórias dos lugares que visitou, dos amigos que não tem mais perto de si, e dos entes queridos. Ora aceitando, ora lamentando a condição de sua vida, Bandeira passará a vida toda passeando pelos caminhos de sua memória, e registrando os momentos presentes e passados, temperados com uma liberdade de versificação refinada.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso eu sinto como ninguém o ritmo do jazz-band
(...)
Ninguém se lembra de política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão do Seridó é o melhordo mundo? ... Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!
(Não Sei Dançar in Libertinangem, 1930)
  .........................................................................................................
(...)
És linda como uma história da carochinha...
E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam
[no morro atrás de casa e tinha cara de pau).
(Mulheres in Libertinagem, 1930)

Lançando mão de tudo o que a literatura universal lhe dispõe, os seus diversos caminhos poéticos nos remetem a sua versificação livre, não por acaso, que em muito comungam com a sua fuga da dor, ou ao menos, a tentativa do alívio da dor. Em muitos casos, assemelhando-se ao enfermo preso ao leito (que poderíamos pressupor o seu próprio corpo físico), que de lá tudo colhe com o olhar, não obstante, querendo não estar ali, mas lá, no lugar daqueles a quem lhe compete permitir pensar que estão em melhor lugar do que si próprio.

A mesma temática da solidão e das recordações aparece na sua obra mais amadurecida, como em Lira dos Cinquent’anos. Diferente da outra lira, a dos vinte anos, de Álvarez de Azevedo, temos um poeta romântico sim, idealista, modelando imagens em sua mente de homem que atingiu o cerne da maturidade e sabedoria adultas, não mais pela idade do que pela vivência e experiência de vidas, alguém que com a mesma ternura de toda uma vida ainda, sustentada pela preservação da meninice, da doçura da infância, se queixa dos fantasmas que o perseguem pela vida inteira.

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até ao fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
(Versos de Natal in Lira dos Cinquent’anos)
.........................................................................................................

O córrego é o mesmo
Mesma, aquela árvore,
A casa, o jardim.

Meus passos a esmo
(Os passos e o espírito)
Vão pelo passado,
Ai tão devastado,
Recolhendo triste
Tudo quanto existe
Ainda li de mim
- Mim daqueles tempos!
(Peregrinação in Lira dos Cinquent’anos)
.........................................................................................................
A casa era por aqui...
Onde?Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinquenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida... nos desenganos...)
A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...

- Mas o menino ainda existe.
(Velha Chácara in Lira dos Cinquent’anos)


Poderiam ser escritas obras repletas de páginas, tentando desvendar o os traços autobiográficos da obra de Manuel Bandeira, e a ponte que ele percorria entre a infância e as recordações. Enquanto, em meio aos gritos rebeldes do modernismo, despojando aquela querência de mudança, tínhamos o poeta que singelamente traçava um olhar brando para a vida. Os vestígios da obra nos permitem pensar que as recordações eram uma fuga e ao mesmo tempo um consolo, da fatalidade da doença tuberculosa à, em seguida, inevitável solidão com a morte dos queridos. Tal delineamento da solidão e da desesperança deu-lhe o costume do sofrer, e na espera da morte, aquela por quem tanto aguardou, talvez para o poeta tenha sido exatamente o tema de sua “Consoada”, talvez tenha lhe dito que o menino que o fortaleceu e manteve vivas as suas memórias, abrandaram-lhe os medos, uma vez que a “indesejada das gentes” era-lhe já a sua íntima parceira.


Referências Bibliográficas

BANDEIRA, Manuel, 2008. Manuel Bandeira de Bolso – Uma Antologia Poética. Editora LP&M Pocket, vol. 675. São Paulo.
BANDEIRA, Manuel, 1961. Manuel Bandeira, Antologia Poética, 7ª edição. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro.
BARTHES, Roland, 1966. Crítica e Verdade. Série Debates, 2007. Editora Perspectiva: São Paulo.
BOSI, Alfredo, 1997. História Concisa da Literatura Brasileira, 37ª edição. Editora Cultrix: São Paulo.
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo, 1983. Presença da Literatura Brasileira – III Modernismo, 9ª edição. Editora Difel: São Paulo
MOISÉS, Massaud, 1971. A Literatura Brasileira Através dos Textos, 1ª edição. Editora Cultrix: São Paulo.
________________, 1996. História da Literatura Brasileira, Modernismo, 3ª edição, revista e aumentada. Editora Cultrix: São Paulo.

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