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Em Defesa do Mundo da Lua

Ele vive no mundo da lua!

Ele é sonso!

Esse aí vive olhando pro nada com a boca aberta.


São estas as frases que eu mais escutei quando era criança. 

Estava fazendo uma observação de aula pro meu curso do CELTA. A aula aconteceu numa turma da Espanha, entre crianças de 9 anos de idade, e o objetivo era apontar características do comportamento das crianças durante um aula, analisando os aspectos como Energia, Motivação, Concentração, Criatividade, etc.

Eu pude ver crianças levantando da cadeira, crianças se apoiando sobre a carteira, crianças que mexiam as mãos ansiosas, crianças que pareciam que tinham uma energia tão intensa presa, que estavam a ponto de explodir... instantaneamente eu fiz uma conexão com a criança que eu fui.

Eu posso estar enganado na minha análise, mas se eu pudesse ver de longe, eu diria que eu era uma criança retraída e que continha um universo imaginário preso dentro de si. Mas eu me lembro ser uma criança que imaginava tudo. Eu não consigo pensar hoje numa criança que não seja assim. E eu me lembro de prestar atenção em tudo, e apenas abstrair e expandir as informações à minha própria maneira, quase como se fosse um filme na minha cabeça.

Quando alguém me contava uma história, tudo estava muito claro pra mim, da minha forma: as cores, o clima, a temperatura ambiente, se estava ventando ou não, os cheiros, as sensações nas mãos ou nos pés, e por vezes, os sentimentos. Mas eu apenas ouvia, eu não tinha autorização para falar. Por muito tempo eu não tive, por muito tempo quando eu tentava falar, minha fala era atropelada. Na verdade isso durou por anos, até durante minha vida adulta, e eu entendia isso como se eu não soubesse uma forma eficiente de fazer valer o que eu tinha a dizer. Então depois de tentar, eu preferia me calar. Mas isso também tinha o seu ônus: eu era a pessoa inexpressiva, lenta, inativa, e assim fui crescendo, odiando a pessoa que eu era e tentando eternamente ser quem queriam que eu fosse.

Pois observando aquela aula, e a liberdade com que as crianças tinham de serem elas mesmas, ao menos naquele pequeno espaço de 2 minutos, eu comecei a me lembrar do tanto de pessoas que eu conheci ao longo da vida que cresceram biologicamente, mas por fora ainda são aquelas crianças. Algumas destas pessoas eu tive um relacionamento muito próximo, até mesmo amoroso, e estas pessoas viam aquela mesma criança em mim.

Eu digo em defesa de nós, de todos nós que somos amantes da imaginação que, não é problema algum viver no Mundo da Lua, não existe criança sonsa, e não existe criança lerda. Cada um processa as coisas no seu devido tempo, e cada criança cresce no seu devido tempo. A lerdeza da criança é, na verdade, a nossa impaciência de entender que ela ainda está compreendendo o mundo à sua maneira, e que ela vai crescer e interpretar tudo. A criança ser burra, lerda, sonsa, etc, é um comparativo negativo porque a única preocupação vigente hoje, parece, é de estarmos prontos pra essa maldita máquina de produtividade e de consumo. Na cabeça de um adulto, essa mentalidade de troca, venda e compra parece ser a única plausível, e qualquer tentativa de algo diferente vai ser destruída, massacrada e esmagada. Talvez por isso a preocupação em não sermos lerdos, sonsos, burros. Não tem espaço para isso no mundo da produtividade. Insistir em ser lerdo, sonso e burro, é negar um mundo que os adultos não querem abrir mão, por isso tamanha pressão.

Não se deveria jamais despertar esse sentimento de culpa apenas porque gostamos de imaginar. Mas ele acontece. Os adultos do nosso tempo sempre nos dizem que seremos incapazes de viver a vida porque estamos agindo como uma criança que ainda não o interpretou da forma como ele é: cruel. É um mundo de dor, de sofrimento, de tristeza, de fome, morte, ódio, separação. Uma criança imagina o oposto disso, o que demos o nome de inocência. Inocência é não reconhecer toda essa brutalidade que nos espera quando virarmos adultos, a ponto de ter familiar machucando familiar. Alguns apelam para mostrar isso de forma literal: eu vou te machucar para você entender que no futuro outras pessoas te machucarão, pois melhor eu do que um estranho. Mas a tentativa de apressar o crescimento e mostrar o mundo real é, talvez, mais uma forma de o adulto apressar a transferência da imaginação do mundo da criança para a imaginação do mundo do adulto, afinal, é parte da mentalidade imaginativa do adulto entender que o mundo é cruel e brutal. Mas para alguns adultos talvez ele nunca seja, então porque criar uma criança para um mundo que talvez ela nunca vá vivenciar de fato? Por que o receio da descoberta de que o mundo pode ser ou não cruel? Nem mesmo um adulto plenamente esclarecido saberia responder esta pergunta, talvez. Afinal, o mundo pode ser cruel mas ele pode também não ser, e interferir nesse processo é, talvez, fruto de algo imaginativo do próprio adulto que se vê responsável por uma criança. Este choque de conjecturas torna as coisas tão doentias e perversas.

Não se deve jamais apressar o processo de crescimento de ninguém, uma vez que nos tornaremos adultos frustrados e incapazes de lidar com isso, a ponto até mesmo de viver na eterna negação dos nossos próprios conflitos, a custo de viver com extremada realidade. Ou vivermos de forma a tentar tapar este buraco que ficou de uma infância que não foi respeitada.

Entretanto, eu não sou um idealista, ao menos não na prática.

Sim, eu falo de forma idealista, eu penso de forma idealista, mas na prática, eu não sou. Eu não acredito em utopias e em mundos perfeitos, não mais. Eu não acredito mais em amor perfeito, não mais. Até mesmo quem um dia teve a intenção de me prometer um mundo de imaginação foi capaz de me dizer que eu sentia dor e estava frustrado porque eu não queria aceitar a realidade. Alguém racional o bastante seria capaz de resolver esta questão? Daí talvez pode ter surgido a necessidade de tanto vocabulário. Como se chama a pessoa que diz amar a imaginação e criatividade mas apenas quando isso traz benefícios para si própria: hipócrita talvez. Quem de nós não é, afinal?

Este é o mundo adulto me mostrando que as coisas são difíceis de conquistar, que temos que aprender a lidar com o não, com o obstáculo, com o não acontecimento das coisas, ou com o sonho roubado de nós. Eu não sou idealista quando penso no tanto de crianças que realmente não tem infância. Eu convivi com uma, fui na verdade criado por uma criança que não teve infância, e o resultado foi a pressa para que a minha infância também passasse logo. Contraditoriamente, eu fui alertado para a brevidade da infância.

Infância é algo relativamente novo, não tendo pouco mais de 100 anos, talvez 200. Antes disso, uma enorme quantidade de séculos nos ensinou que éramos adultos em miniatura. Talvez o problema tenha sido na separação da infância da vida adulta, como se fossem dois mundos plenamente distintos. Eu sempre penso que estas teorias que foram surgindo dentro das universidades eram coisas feitas para uma classe da elite da qual eu nunca fiz parte, e por isso não se aplica a mim e aos meus semelhantes. Historicamente sempre fomos vistos como animais, então eu era o filho de um animal, logo, um animal em miniatura. E animais não tem alma, não tem imaginação, não tem espírito, não tem nada além do instinto animal. Esta é a forma selvagem como um animal encara outro animal, apenas esperando seu vacilo para virar presa, sendo submetido à cruel lei natural em que se você não estiver atento o tempo todo, você tende a desaparecer pare sempre. Não existem animais no Mundo da Lua. Não consigo discordar da Isabel Allende quando diz que a infância é o momento mais triste e solitário da vida, porque não temos o direito de escolher os adultos com quem vamos conviver. Isso vai refletir no adulto que seremos, logo, na forma que vamos encarar o mundo. Talvez por isso o mundo seja tão doente.

Eu venho em defesa daqueles que optaram em se refugiar num mundo que não existe afim de lidar com as dificuldades deste, pois de que adianta viver tão cercado de realidade, alegadamente, se for para fim de inventar uma outra realidade? Deus, religião, hierarquia, poder, política. Estas coisas todas são fruto da imaginação adulta, mas de tal forma duras que são capazes de maltratar e matar. Há aqueles que se protegem se defendem dizendo que vivem com os pés no chão, enquanto escondem sua verdadeira natureza de todas as outras pessoas. Não é essa a vida enfim? Nossa imaginação nos permite viver estes personagens que chamamos de adulto, estes personagens que da porta de casa para fora são uma pessoa, mas da porta de casa para dentro, são outras. Nossa descrição pessoal nos torna genuinamente imaginativos, mas nossa imaginação adulta é falsa, falha, cruel.

É compreensível a razão de tantas crianças e adolescentes verem a vida adulta como a vilã, afinal, a vida adulta constrói uma imaginação repleta de falsidade, um verdadeiro teatro em que na hora em que estamos nela, vivemos eternamente interpretando uma versão que nunca seremos de nós mesmos. O terror que sentimos pela imaginação infantil seja, talvez, o quão mais verdadeira ela é, e o quanto elas nos mostra os monstros que vamos nos transformando.

Foi através da observação das crianças que eu pude fazer as pazes com a criança que vive em mim, e dizer a ela que não estava errado viver imaginando, criando, desenhando, pintando. Talvez aquela criança ainda viva, e talvez ela nunca vá morrer, talvez ela ainda esteja esperando por mim no Mundo da Lua. Talvez ela esteja me pedindo pra que eu volte pra lá para brincar com ela, afinal nada mais importa. Tudo é efêmero e parte da construção destes personagens da vida adulta. Talvez o adulto genuíno seja uma verdadeira criança.

Por isso eu saio em defesa do Mundo da Lua, onde lá, vivem todos os heróis capazes de combater estes monstros. E nós temos o direito de combatê-los.

Obrigado a todas as pessoas que vivem neste mundo, e que me permitiram vivê-lo também.

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