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Barca do Breve Retorno

 Vesti meu guarda roupas De roupas já usadas sem pressa Lavei as roupas novas Sob as águas de incerta promessa Cobertas no varal Caiu em mim a luz Nem tudo é vendaval Tudo, ainda que não rime, é passagem Atenda, ainda que doa, ao pedido Só dá, amigo, um pouco de coragem. Segue além as barcas que subimos Param nos portos Encalham no mar Ou afundam no abismo Mas não, Não afogue-se em melífluas tristezas Caem as pétalas de flor Sobram os espinhos Florindo ainda com belezas. Veja, eu tenho a certeza Agora sim, agora o remo pesa Mas não é uma penitência Não é castigo. É só caminho da nossa natureza.

Barca da Renúncia

Arrasto-me sobre os pés Restando o sussurro às paredes Preces mornas de súplica e perdão Levado pela barca da renúncia me deixei. Esta em que eu mesmo adentrei. Além do horizonte,  Disseram das Américas, espera Mas só, aguardo impaciente  O fim deste mar que não se encerra. E o que em mim se enterra, Dia após dia, É o baque surdo de um grito acorrentado: Liberdade, liberdade! Que não sai. Que morre na vontade.

Sacrum Putridaeque

  sacrum putridaeque "Animae exspirant, redire nolentes... Sed redeunt in sudore, dolore et metu, formam suam relinquentes." ✝ Invocatio Sacroputrida: Vox Ultima Ex Reliquiis ✝ Substância em ardência Como que em condenação Ao inferno da tua ausência. De seu cílio cai o lastro Da aurora poma aberta Afligida ao omisso mastro. Minha boca sente a míngua Pela privação do tato Da oração com tua língua. Numa parte sem ritual E eu aqui que só me encontro Do meu gozo sepulcral O meu tédio, meu remanso Invocatio sacroputrida Sem perdão e sem descanso! Ora em mim sem castidade Faz-me diário do teu ímpeto, Sem decência ou piedade! ================================================== Invocatio Sacroputrida: Vox Ultima Ex Reliquiis Substantia in ardore Quasi damnationis Ad infernum absentiae tuae. De cilio eius cadit onus Aurorae pomum apertum Afflictum ad mastum neglectum. Os meum sentit inopia Privatione tactus Orationis cum lingua tua. In parte sine ritu Et ego hic solus invenior Gaudii m...

Nosso Livro de Seshat

Você que carrega nas palavras O amor devoto dos desesperados Abre lentamente este livro Das minhas íntimas memórias Enquanto te transbordo meus versos. Cada página,  O sussurro do que guardei Para quando você chegar: Meus  toques secretos Tuas lágrimas secas Meus gestos discretos. Cada capítulo O testemunho do que herdei Desde a gênese tragédia Das flores que atravessam os anos Ante esta infame comédia! Você que lê com a carícia De ativo dedo à cicatriz Rascunha minha página usada, Ardendo o nome que eu sempre quis! Este livro de incerta conclusão Sem capa, marcador ou proteção. Apenas tua escrita viva Marcada inteira no meu solo Apenas nossa história apócrifa Ardendo inteira no meu colo!

Em Ruínas a uma Flor

Minha flor despedaçada Amordaçada, na sombra obliterada Deixada para trás, enquanto o mundo ainda é mundo. Ergo-te agora Com ânsia nas mãos e o peito aberto Cobrindo este altar com o espinho pungente do não dito. Que cai feito orvalho e perfura-nos o peito. Cada cicatriz, marca e memória Cada silêncio imposto E cada ausência de cuidado Que te abriu essa cova Eu venero. Vem cá e se cobre  Protege-se do ar gélido Quer um chá? Uma história de ninar? Aqui, talvez, desague Escorre sem pressa, temos todo o tempo do mundo Nestes próximos cinco minutos. Tudo que aqui vê agora É teu. Este espaço Este momento Este tempo Onde só nós habitamos. Deita, veste teus panos de delicadeza Eu recolho nossos fragmentos Ainda que se confundam Teus, nossos... meus! Aconchega tua bagagem Eu dobro tuas roupas Até as que você ama usar Mas nunca te deixaram Tuas roupas, quaisquer roupas Que te embelezam como o último pôr do Sol. Aqui, neste som distante Onde tudo parece esquecido Só existe nós por enquanto. ...

A Câmara Oculta de Asmodeus

Ruídos no meu porão Desci com minha própria lanterna Para me cegar com a escuridão Escrevo com o meu sangue  E recebo o aplauso pela tinta Cada palma: um prego a mais neste caixão. A musa me usou como hospedeira Não sei se estou pronta a sentir Ou deixar o desespero na moldura Todo verso que escorre de mim É uma mentira implorando por cura. Cada estrofe sai como a morte Daquilo que escondo sob o chão Tento ressurgir qual a consorte De um pecado - sem extrema unção.

O Abismo

Da porta do meu lar No meio da sala de estar Avisto todo dia o abismo Este, que é lugar sombrio Sonoro e repleto de textura. Sei que lá de dentro Cresce vasta vegetação Existem homens ajoelhados Elevando ao céu a mão E mulheres plenas de potência Fingindo ser bravura sua carência. Aqui, em casa, vivo só A vida só se vê ante sua borda Essa existência divina, quase vazia Essa voz que me preenche todo dia Contemplo o abismo por mais que eu queria Até que de repente, o que acontecia: Ele toca a campainha Chega de chapéu e de casaco Coloca os seus pertences no sofá Dá-me um abraço familiar Levanta, ordena, e serve-me um chá!

Oração a Quem Floresce Longe

Senhor, que sonda os pensamentos Do homem na balança E pesa cada lágrima que cai no íntimo fio Recebe está memória como incenso tardio Este amor, que já não arde, mas está sadio. Na janela da vigília passou esta manhã Um feérico jardim que o nome dela segredava Diz gentil, sem pronunciar palavra. Adentre as vinhas de um tempo que passava Havia uma sombra de sorriso emérito Não meu, não mais Mas santo, santo e impérito.  Caiu sobre mim como a chuva do estio Nem para semear, nem para colher Mas para ensinar em som vazio. Amei, Senhor, amei confesso Talvez não soube como amar correto Mas deixo agora aqui o vaso aberto Prosto ante Teus pés clementes Nutrindo a fé da paz que não me coube Venha das mãos de jardineiro presente. E se um dia olhar para trás Que veja em mim a luz E não ferida. E se um dia orar  Para aliviar o seu cansaço Que sinta Teu espirito em resposta À ausência de um abraço E que floresça E que semeie Mesmo que em terra de outrem Que em tudo Te descubra Como eu a d...

Erospectro

Dança a débil seda da cortina em altivez Acaricia, enquanto sôfregas, balança O alabastro lívido de porcelana tez. Ajoelha ante a luz da superfície pálida Princesa portentosa do teu estreito templo Aporta em silhueta a majestade cálida. Anda, paladino, sobre a laiva curvatura Forrada do plantio de calêndulas laranjas Descansa à boda quente da lacuna escura. Venera esta abadia, pétala a pétala Diante da minha dupla onírica imagem Repousa em cada vale de divina sépala. Despeja-me o orvalho em êxtase, a coroa, Na carne-alvura arqueja em nosso infausto cio, Em véu e labareda, um altar, uma pessoa. E quando finda a música, resta-me a visão: Princesa, diabo, luz, deleite em união, No espelho sorridente à criadora perdição. 

Saṃsāra संसर

Salvaguarda de cetim em folhas afanadas Uma, duas, três, esparramando pela estrada Soa o silêncio algures de um astro que se vai O vazio alhures acalenta o que não cai Valsa lentamente na brisa a madrugada No ar flutua, tênue, suave e enamorada Passo a passo o adeus da anciã morada Que chora em verde véu seu luto à folha amada.